Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

06 março 2005

O Fim

Há momentos para tudo. E tudo o que começa tem um fim. Estas folhas electrónicas, que começaram da necessidade de partilhar palavras, momentos e sentimentos, foram também o espelho de uma amizade que cresceu até hoje. A amizade vai continuar, o blog não. A todos os que deram sentido a estas palavras, um obrigado muito grande.

01 março 2005

Sabes...

Sabes que as asas que dizes ter não existem e que o limbo onde sempre andas um dia vai deixar-te cair. Sobe a rua a correr como fazes todos os dias nas manhãs frias deste Inverno de sol, deixa o casaco escorregar pelas ombros sem te preocupares em compô-lo só porque não te importas e nem o Fernando Pessoa esplanado desde cedo fará cara torta à tua passagem sempre ligeira. Levas o sorriso na cara que espalhas por toda a gente, que aquece o coração vazio do velho mendigo de mão firmemente estendida. O eléctrico dobra a esquina enquanto atravessas os carris. Atira-te, só assim sabes se voas.
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25 fevereiro 2005

Não Sei

Não sei se era aqui que era suposto chegar, se era este o lugar, se era este o tempo. Cheguei à esquina onde a vida dobra, à foz dos atalhos onde os caminhos novos se fazem e sei que tenho pouco tempo para dar o primeiro passo, o derradeiro, aquele que fará com que tudo o que fica para trás faça sentido, mesmo que sejam só atalhos menores. Não tenho tempo para pensar e o precipício que se adivinha em cada passo errado faz-me engolir em seco, faz-me fechar os punhos com muita força, faz-me inspirar lentamente para conseguir manter convicções.
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17 fevereiro 2005

A Visita

A tua casa era no topo da árvore mais alta de todo o bosque. As escadas subiam num caracol sem fim e era por isso que ficava tonta. Enfeitava-me de flores sempre que recebia o teu convite para uma sopa de cogumelos encantados, vestia o vestido verde muito comprido, deixava os cabelos ruivos escorregar pelas costas e apressava o passo sobre os pés descalços no caminho junto ao rio. Encontrava-te à janela e depois subia para o caracol que haveria de entregar-me aos teus braços. Dentro de casa tinhas sempre um vendaval de folhas de papel escritas de um lado e do outro, rabiscadas, riscadas, folhas e mais folhas que se misturavam com as claves de sol e as colcheias que dançavam ao som das músicas do gramofone incansável.
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16 fevereiro 2005

Crime Passional

Há laços nesta vida que se apertam com o tempo. Um dia quis acabar com o nosso, não sabendo que os laços muito apertados não se conseguem nunca desfazer. Foi então que ficámos num limbo, ficámos num abismo suspensos sobre as pontinhas dos pés sabendo que um dia haveríamos de cair. O tempo foi passando e laço a apertar. Se cairmos, caímos os dois. Agora sei que tens uma faca afiada na mão, que queres cortar a corda e deixar-me cair sem piedade no chão de terra vermelha, seca, onde morrem todos os amores. Sei que vais fazê-lo hoje no preciso momento em que olhares para mim e incendiares os teus olhos negros. Não devia ter deixado que o tempo apertasse tanto o maldito laço que agora me arrasta para a pira inflamada do teu olhar. Nunca consegui desfazê-lo apesar de todas as noites perdidas à luz de uma vela a tentar descobrir as suas voltas misteriosas. Agora sei que se cairmos, caio só eu.



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15 fevereiro 2005

Quando?

Quando é que vamos ao cinema, quando é que vamos a um concerto, quando é que passeamos na praia, no campo e na cidade, quando é que conhecemos uma nova cidade. Quando é que vamos andar de bicicleta e fazer uma escalada e nadar na piscina. Quando é que comemos um bom petisco numa terreola perdida e passamos a tarde com os velhos na taberna da esquina. Quando é que nos embebedamos e rimos das tolices próprias e das alheias. Quando é que corremos ruas a tocar às campaínhas, quando é que acordamos quem dorme às tantas da matina. Quando é que viramos a noite em conversas como cerejas, quando é que enfim nos deitamos juntos, enroscados e nos trocamos num beijo doce. Quando é que fazemos isto tudo. Quando é que chegas. Quando é que bates à minha porta.
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14 fevereiro 2005

My Funny Valentine

No dia 14 vendem-se flores, peluches, balões em forma de coração, postais com rimas fáceis, leva-se o par a um jantar com velas, ela usa a blusa mais bonita comprada de propósito para a ocasião e tem roupa interior sugestiva, ele veste o fato do costume com uma gravata mais vermelha que o habitual e usa os boxers novos... Depois têm mais 364 dias sem jantares, sem noites de paixão inesgotável, ele continua o caso que mantém há anos com a colega loira de pernas altas e ela continua a tentar engravidar para salvar a aliança que teima em escorregar do dedo. Não gosto de hoje. Não gosto de datas. Não gostos de peluches. Gosto de velas. Gosto de jantares em dias ao calhas com vinho tinto.
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10 fevereiro 2005

Bewitched, Bothered and Bewildered


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Nightswimming

Sabes, a vida é feita destas coisas todas. Das esquinas escuras e dos bikinis amarelos, miúda. O sumo da vida consiste em beber um copo e no fim descobrir que o bar não tem multibanco. Agarrar o teu sorriso bonito numa sombra da noite e beijar com força, sabendo com a certeza pesada do mundo que não volta a acontecer. Inspirar e conseguir absorver o cheiro doce da pele todo de uma vez. Sim, eu sei que tu já sabes isto tudo, mas eu estou agora a aprender.
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08 fevereiro 2005

Regresso

Chego a casa com saudades tuas. Hoje, depois de quase um mês sem te ver, senti o teu cheiro e pensei que tinhas voltado naquela onda de gente que se amontoa no metro todas as manhãs para ir trabalhar, e pensei que já não ia trabalhar porque sem que eu te visse haverias de agarrar-me a mão e resgatar-me do meio da multidão. Deixei-me ficar quieta com os braços estendidos ao longo do corpo a tentar
adivinhar-te entre tanta gente, a sentir a tua mão quente. O metro chegou, a gare ficou quase vazia e tu não estavas lá. Chego a casa com saudades tuas.
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06 fevereiro 2005

In the Morning

Raios, 8h00. Saio da cama a correr. Tenho menos de 20 minutos para estar fora de casa, vestida, minimamente cuidada, com a papelada que estive ontem a ler e a escrever, com um pouco mais de vontade de viver estes dias de correria do que ontem, do que amanhã. Deixo a água a correr na banheira enquanto alinho as folhas amontoadas sobre a mesa da sala e arrumo tudo dentro da pasta. Está frio. Um dia esta mania de andar pela casa semi-nua vai custar-me uma constipação valente. O duche rápido ajuda a aquecer e a organizar os restantes 15 minutos. Faltam 10 minutos. Não deixo de pôr creme pelas pernas e nos braços e na barriga que e um ritual indispensável, completamente automático. Visto os jeans e calço as botas castanhas, escolho uma blusa, levo um decote maior, não tenho muito tempo para pensar. Num instante visto o casaco e enrolo um cachecol ao pescoço, pego na mala, na pasta. Vou a correr, ando sempre a correr para todo o lado. Chego a horas ao trabalho e isso talvez não fosse muito importante, talvez não fosse tão importante como o beijo que tinha para te dar e que foi levado pelos vendavais das manhãs.
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05 fevereiro 2005

Underwater

Afundei-me na banheira e descobri que as lágrimas não se misturam com a água quente perfumada com sais de banho... a espuma fica por cima e as lágrimas caem como pedras em charcos de água. A água quente a correr na banheira não me aquece. Se o meu coração for já uma pedra vou ao fundo e sei que não me ouvirás chorar por ti.
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27 janeiro 2005

Silêncios da Vida Conjugal

Há horas que está com aquela cara. As manhãs são sempre agitadas com tanto trabalho. O telefonema interrompeu a rotina dos papéis, do agrafadores e saca-agrafos, transformou-lhe a cara alegre, subiu-lhe a sobrancelha. Não disse mais nada nem o rodopio ocasional da sala lhe levantava o olhar fixo no scanner. O sobrolho só descansava perante a fotografia do bebé exposta de forma cuidada sobre a secretária. Todas os dias havia conversas sobre fraldas e desenhos animados no canal Disney, todos os dias havia sorrisos doces apesar das olheiras ou outros sinais mais ou menos evidentes da vivência absoluta da maternidade. Olhou para o telemóvel vezes sem conta, tantas quantas as vezes que recebeu olhares reconfortantes da colega do lado. O telefone não voltou a tocar até ao final da tarde.
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23 janeiro 2005

Os Reis

Era uma vez três reizinhos que viviam numa t-shirt azul muito pequenina. Só sabíamos que eram reis porque tinham três belas coroas que sobressaiam entre aquele azul céu... e, em boa verdade, eram uns cabeças no ar. Passavam o tempo todo escondidos mas, tolos, deixavam sempre que as coroas reluzentes denunciassem a sua presença. Andavam sempre juntos, uns atrás dos outros, sempre pela mesma ordem, primeiro o Baltazar, no fim o Melchior e no meio o... o... o sem nome!... Bem lá nome devia ter mas nunca se lembrava e os outros acabavam por esquecer-se. Sabíamos que era o reizinho do meio e que usava a coroa de pernas para o ar só para ser diferente dos outros. Um dia disseram-lhe "o nome ou a vida" e ele ficou a pensar sem que tivesse uma única pista, uma réstia de lembrança que o pudesse salvar da forca que o esperava. A t-shirt azul céu transformou-se numa grande nuvem negra e os reizinhos ficaram à chuva a pensar no bendito nome. Uma voz doce anunciou que o nome tinha seis letras e os três cabeças no ar desataram a gritar palpites ao acaso que o tempo que tinham era já pouco. "Será que me chamo Aramis? Tem seis letras..." e os outros responderam logo "NÃO! Totó... que se fosses Aramis nós éramos Atos e Portus e deixávamos de ser reis para ser cavaleiros"... O reizinho da coroa ao contrário começou a chorar muito e a ele juntaram-se logo os outros dois, um de cada lado, a tentar confortá-lo. A voz doce voltou entre as gotas de chuva e disse "A única salvação que terás é a amizade, que é ouro.". E os três gritaram juntos "OURO!... Ouro, incenso e mirra... Será que somos os reis magos?"... "Já me lembro, sou o GASPAR, sou o Gaspar!" E a t-shirt retomou a sua cor inicial e os três reizinhos alinharam-se novamente nos seus lugares de sempre, primeiro o Baltazar, no fim o Melchior e no meio o Gaspar.
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21 janeiro 2005

bloom: ensaio primário sobre as variações do tempo

A primavera é mais bonita quando chega no Inverno, mesmo a meio do Inverno. Em Dezembro devia chover e fazer muito frio mas mesmo que estivessem zero graus lá fora, nos teus braços haveria sempre flores e manhãs frescas com o sol a brilhar. Não me lembro de um Inverno tão quente, não me lembro de ter aberto a terceira gaveta da cómoda e escolher um cachecol e um par de luvas para enfrentar as manhãs geladas, não me recordo de sentir o nariz frio nem os lábios secos pelo vento. Depois chegou Janeiro e a chuva teimava em não tirar da chapeleira o chapéu de chuva encarnado que veio de Londres de propósito para passear em Lisboa. Só me lembro de ter chovido uma vez, mas pousaste a tua gabardina sobre os meus ombros e desatámos a correr para a cafetaria mais próxima e ficámos a ver chover enquanto brincavas com as pontas molhadas do meu cabelo. Foi só nesse dia, nunca mais choveu assim, mas voltaste e brincar com o meu cabelo repetidas vezes.
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13 janeiro 2005

Incompletos

A Janela da Atalaia estava tão sossegada que ninguém diria que era a mesma que ao fim de semana é lugar de um frenesim interminável. Tinham decidido reconsiderar a possibilidade de um sorriso partilhado à mesma mesa por entre um par de copos vermelhos de pé alto e velas a derreter sobre castiçais negros, depois de uma semana sem que alguma vez os olhares se tenham cruzado nem o tom da voz aguçado a vontade urgente de um breve encontro. Ela telefonou depois de hesitar um milhão de vezes, depois de ter andado às voltas com o telefone na mão. Ele olhou o telefone pousado sobre a mesa a repetir de forma intermitente o seu nome abreviado... hesitou um milhão de vezes antes de atender. Idiotas.
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Shadow & Light

O que farias se um dia te dissessem que o fundo de investimento onde apostaste a tua fortuna era uma ilusão? Que afinal era tudo uma ilusão idiota, na qual tinham sido apanhadas as pessoas sensíveis (idiotas), incapazes de perceber a diferença entre um pedacinho de noite e uma vida inteira? Idiotas, que não sabem a diferença toda entre passar quinze minutos agradáveis entre copos de vinho e prolongar esses minutos felizes pelos dias todos. Mesmo que esse seja o prolongamento natural, só os tolos se deixam levar. Hoje amanheceu de chuva. A sério que não fui eu.
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11 janeiro 2005

Surf's Up (pt.4)

A tarde segue devagar com os corpos molhados a secar ao sol. Talvez não seja preciso dizer mais nada senão todas as palavras doces que os teus olhos confessam. Voltamos ao rio antes de nos rendermos às delícias do jantar que nos espera no regresso à aldeia com as mãos frias escondidas nos casacos e os corpos ainda quentes do amor.
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06 janeiro 2005

Surf's Up (pt.3)

Descemos a aldeia, voltamos ao rio. Nem precisava de espreitar a fita, o desejo incendeia-se. Entramos num campo ainda verde. Deitamo-nos ao sol, os corpos enroscados. Ficamos a olhar o céu e a trocar segredos. E trocamos beijos com a urgência das paixões adolescentes.
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02 janeiro 2005

Surf's Up (pt.2)

Olho para ti a andar ao meu lado, a mochila às costas e a minha mão agarrada à tua dento do bolso do teu blusão. Sorris como sempre. Tenho o cabelo molhado embrulhado por baixo do capuz da camisola. A aldeia ainda está sossegada. Sentamo-nos à mesa para um café e denuncias com um olhar provocador a descoberta das fitas do bikini...
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30 dezembro 2004

Surf's Up

No amanhecer do tempo há sempre um chilrear que nos desperta. Saio do saco-cama quando o sol me abre os olhos e atiro-me à vida num mergulho para o frio ali a dois metros. Sorris, ainda dorminhoca de sonhos e beijas-me quando regresso molhado. Imitas-me no acordar e vais ao rio, dás braçadas leves e aconchegas a alma na toalha. Caminhamos até à aldeia onde procuramos um café que nos desperte para o dia cheio, trocamos sorrisos e sonhos. Acampados do mundo sob o sol da tarde, o bikini laranja nunca te pôs tão bonita. É dia.
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17 dezembro 2004

O sabor dos corpos com alma

Às terças-feiras depois das 22h30 partilhavam quase sempre o balcão do Apollo XIII no Bairro Alto num encontro certo sem marcação. No primeiro dia ela pediu-lhe lume depois de remexer a mala à procura do bic cor-de-laranja. Ele ofereceu-lhe um sorriso, passou-lhe o isqueiro preto para a mão e ela acendeu o cigarro sem ser capaz de desviar o olhar daqueles olhos azuis. Há dois meses que passavam juntos as noites de terça-feira e repetiam cervejas pedidas aos pares. Ele ia ao bairro para se esquecer dela e ela ia para que ele se esquecesse dela. Um dia ele perguntou-lhe se estava à espera de alguém ou se tinha alguém à espera e ela respondeu que não, que o amor nunca tinha estado lá e a paixão é sempre efémera e depois mudou de assunto. A música no Apollo era só um pormenor mas já tinham virado muitas noites em amenas discussões sobre o tema, reconhecendo gostos em comum e partilhando algumas descobertas. Às vezes trocavam o balcão pela mesa do canto, aquela mesmo no cantinho e nessas noites deixavam-se ficar um pouco mais alheios às movimentações mais ansiosas do bar. Ele não sabia bem o que é que ela tinha que tanto o encantava, mas ela sabia que tinham sido os olhos e o sorriso a provocar na pele um delicioso arrepio só comparável ao toque das suas mãos da primeira vez que pediram mais umas médias para a mesa. Um dia ela também quis saber se havia alguém à espera dele, e ele torceu a boca antes de dar mais uma passa no cigarro e depois disse que não, num tom seco, ainda ressentido. Pegaram nas cervejas quase em simultâneo, beberam mais um pouco e ao pousar da garrafa ele sorriu. Havia nele a imensa sensualidade dos homens conhecedores e admiradores do mundo feminino e absolutamente despretensiosos em relação a essa subtil invasão ligeiramente incómoda. Ele sabia bem que ela não podia ter ninguém, a pergunta indiscreta umas semanas antes tinha sido pura retórica. Adivinhou a resposta desenhada nos seus lábios muito antes, desde o primeiro dia. Nos homens é mais difícil ler os lábios. Imaginava-o com muitas mulheres. Talvez uma lhe tivesse arrancado do peito o coração sem piedade nenhuma e depois tivessem havido outras que lhe provaram só o corpo cru em excessos de testosterona, em excessos de só. Ele ia ao bairro para se esquecer dela. Na última noite ele já estava sentado ao balcão acompanhado pela cerveja quando ela chegou fugida à chuvada que a manhã tinha trazido e que parecia não ter fim. Atirou para as costas o capuz da gabardina encharcada antes de lhe dar um beijo leve sobre a face quente. O balcão estava lotado e a mesa do canto à espera de ser mais uma vez cúmplice da fuga dela e do refúgio dele. Não sabia porque é que os homens a queriam tanto nem porque é que se sentia sufocar quando eles bebiam vida nela como vampiros e a deixavam numa morte lenta insustentável. Ela ia ao bairro para que ele se esquecesse dela. A noite estava mais fria e o bar mais agitado que o habitual para uma terça-feira. Ele passou-lhe a mão pelo rosto molhado. Naquela noite ficaram a ouvir a chuva cair lá fora e trocaram as cervejas pelos sabores magníficos dos corpos com alma.
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15 dezembro 2004

There's music on Clinton Street all through the evening*

As noites dessa ilha de prédios enormes devem ser vivas. Enquanto se dorme, deve correr nas veias dessa cidade-ilha-mágica uma animação de carrossel sofisticado que não pára nunca. Enquanto percorro essas ruas com frio, um casaco azul tapa-me do mundo desconhecido e dessas marés de metereologia desassossegada. Enquanto os bêbados burgueses desfilam pelos bares famosos de East Village, jovens inquietos de paixões desfeitas compensam a felicidade nas notas soltas de músicos vadios residentes em caves impróprias. E, às 11:56PM de um December 15th, eu sei que cada sopro do Joe McPhee equivale em afecto a um gole de doçura dos lábios de quem se ama. A distância é feroz com os pobres. Mas regista que a noite ainda não caiu inteira sobre nós.
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*sincerely, L Cohen.

13 dezembro 2004

Faz de conta que é Maio

O silêncio das manhãs de feriado faz quase crer que o mundo acabou, que a agitação global se cansou e que afinal não há greves nem terrorismo, não há crises políticas, não há burocracias nem subsídios de desemprego atrasados seis meses, não há inflação nem urgências hospitalares, licenciaturas sem saída profissional nem estudantes bolseiros a jantar na sopa dos pobres, não há assaltos à mão armada, não há tunnings a varrer as estradas com uma foice, não há cancro nem sida, nem prostituição infantil. É dia um de Maio a acordar na lentidão das longas manhãs de primavera. Ainda agora Maio começou e ainda é tão longe. Já não há multidões na rua a agitar as almas e as consciências, a fazer das palavras e das pedras da calçada mais do que se diz e mais do que o chão que se pisa. As gentes já se calaram e já não se alvoraçam e preferem render-se à lazeira mundial do início do mês.
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11 dezembro 2004

Um Sorriso Desenhado #2

Houve dias em que hesitou, que duvidou que houvesse doçura maior que o seu corpo pequenino descansado sobre o peito, que teve tanto medo como ele tem dos papões que às vezes assustam os sonhos. Esteve que tempos sentada na beira da banheira a olhar para o teste exposto em cima do tampo da sanita a pensar no que havia de fazer e no que não podia fazer, abraçou a barriga e pousou a cabeça sobre os joelhos. Vens mais cedo do que queríamos, disse baixinho. Telefonou para Barcelona. Meu querido, sei que estás cheio de trabalho mas precisamos de conversar. Depois de amanhã estarei em Madrid para uma conferência, logo de seguida vou ter contigo e passamos o fim-de-semana juntos. Há um ano que andavam com as vidas trocadas entre Lisboa, Madrid e Barcelona, entre aeroportos e auto-estradas. Nesse fim-de-semana selaram com um beijo em plena Plaza Catalunya o amor correspondido e inesgotável que os unia. Depois a barriguinha grande voltou à sua forma inicial e a vida nunca mais foi igual. Só o amor permaneceu inabalável. Terminou o artigo para a revista e foi devagar, em passos leves até ao fundo do corredor. Abriu a porta meia encostada e acordou-o com um beijo que foi imediatamente retribuído juntamente com um abraço quentinho. Vamos, temos que estar no aeroporto daqui a uma hora.
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04 dezembro 2004

Um Sorriso Desenhado #1

Uma barriga grande pesa menos que um ventre ainda liso e perfeito. Tinha deixado a aparelhagem ligada convencida que assim a música havia de chegar até à sua alma ainda pequenina adormecida no quarto ao fundo do corredor, com a porta meia encostada para que os papões não invadam os sonhos. Talvez assim o sono seja mais doce. Às vezes passa a mão na barriga com saudades dele dentro dela a encher-se de vida. Todos os dias escolhe uma história diferente para o adormecer.
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27 novembro 2004

A despedida é mais triste quando não olhas para trás

Desço as escadas mais difíceis de toda a semana e tento não olhar para trás, não me quero transformar em sal. Estiveste tão fria, hoje. Fugiste sempre da minha vontade infinita de te tocar, provar a alma, descansar a cabeça no teu umbigo e ficar a sorrir a noite toda. Afastaste-te tanto, como a dizer desse modo tudo o que a boca conseguiu evitar. Desço as escadas mais tristes do momento mais frágil da semana, o táxi já saiu do Largo do Cauteleiro e eu sou só um fantasma a vaguear nas Escadinhas do Duque. Já nem o meu castelo, que olha de frente, me consegue arrancar um sorriso, a noite está fria, tão fria, quando fizemos o caminho a subir não era Inverno, pois não? Atravesso as estrelas azuis do Rossio na esperança de uma chuva de magia, mas agora vejo só falsos milagres à base de electricidade. Talvez a esta hora o táxi já te tenha entregue inteira em casa, eu nunca hei-de voltar o mesmo. Fiquei sem vontade, roubaste-ma lentamente, aos bocadinhos, e prendeste-me o desejo em fios de marioneta. A esperança vaga que ainda havia foi-se há poucos minutos, quando negaste um último beijo, só queria uma boa noite, só, e tu viste filmes e sabes que não se negam beijos de despedida, eu fiquei a mastigar o sabor do bocadinho de pescoço que não conseguiste afastar. São 02h11, estou acordado, lembro-me que aqui em casa houve um jantar mas não quiseste ficar comigo afogada no sofá a ouvir o Sérgio que cantava sobre quem parte corações como quem parte um baralho de cartas, sei que fomos passear e sei que num momento da noite, entre um gole de café doce e a matrícula de um táxi, fui transformado em nada, perdi tudo o que nos levanta da cama e provoca sorrisos, tu seguiste em frente impassível à lamechice de um pateta magoado, ofegante de cansaço interior como de tripas do avesso, mas só quando vi que o martini se derramava no chão à medida que bebia do copo é que percebi finalmente que não havia mais nada.
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26 novembro 2004

Quarto Crescente [IV]

Logo depois de a perder tentou encontrá-la em outros braços, em outros beijos, e se ela não fosse sempre tão maravilhosa era mais fácil deixar-se levar. Não há nada que anule tão penosa ausência. O whisky já pesa na cabeça e os cigarros já são todos iguais, queimados sem vontade, sem sabor. O copo fica a meio, pousado sobre a mesa quadrada, o masso vazio embrulhado num punho fechado. Foi num repente que se levantou... a cadeira arrastada sem jeito depois de a ver com o sorriso doce nos lábios com tanto para lhe oferecer.
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23 novembro 2004

Lua Nova [III]

As noites... tão longas sem ela. Há sempre almas perdidas à espera de pessoas, de palavras, de afagos, de sentir só o calor de uma mão, à espera de qualquer coisa. Ele só esperava por ela que era tudo, a atravessar a porta, a sorrir, a esvaziar os copos altos, dourados como a sua pele doce que não lhe sai da cabeça. Os cigarros nos intervalos dos tragos, as conversas de circunstância com outras almas despidas. Tenho frio, grita baixinho, para si mesmo, tenho tanto frio.
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20 novembro 2004

Quarto Minguante [II]

Saboreou mais um pouco do copo alto... o gelo a derreter. Imaginava-a a entrar por aquela porta, com o sobretudo cinzento e o cachecol de lã enrolado no pescoço e nos lábios o beijo que lhe oferecia antes do imenso sorriso que quase sempre o emocionava. Imaginava-a acender o cigarro ocasional num gesto terrivelmente feminino enquanto provava do licor que pedia depois do café e que lhe adoçava ainda mais a boca. Rouba mais um cigarro ao maço apertado no bolso direito dos jeans e a noite segue fria, solitária, sem conversas nem lábios doces, só a lua magrinha pendurada no céu negro.
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16 novembro 2004

Lua Cheia [I]

Bebia imenso de todas as vezes que ela chegava mais tarde, de todas as vezes que a saudade dava e sobrava para encher mais de meia dúzia de doses daquele whisky velho que aprendeu a beber ao mesmo tempo que aprendeu a viver sem a sua doce presença. Os copos altos, dourados, com três ou quatro pedras de gelo mesmo até acima seguiam-se num vagar nocturno a que o corpo já estava habituado e a cabeça não tinha como recusar. Primeiro fazia o copo dançar entre as palmas das mãos quentes que faziam o gelo estalar e tilintar muito baixinho enquanto as pedras se encaixavam umas nas outras para depois se afundarem juntas e depois de as fazer rodar sobre si mesmas provava o dedo indicador e era assim que desenhava o primeiro sorriso de todas as noites.
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13 novembro 2004

Um afago, duas carícias e três gramas de ternura

Não penses e não faças nada, deixa-te levar pelo calor das mãos, do vinho e dos sorrisos, por todo o carinho que chove sobre nós e que aquece a noite. Não penses e deixa-te seguir pelas promessas da lua, a loiça lava-se depois, a roupa estende-se mais tarde, por agora ficamos só dois corpos com vontade de descobrir toda a beleza da noite ao som dos lalalas do Devendra e amanhã de manhã acordo com a barba sobre essa barriguinha divina dona do umbigo mais bonito do mundo sem retoques de photoshop.
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Tenho as mãos tão frias e não quero fazer nada, não quero ir para mais lado nenhum senão para o teu colo e sentir-te o calor. Podes descansar sobre a minha barriga e eu desenho caracóis no teu cabelo até altas horas da noite sem querer pensar em mais nada senão neste lalala.
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Castanhas, vinho e mimo

Dá uma oportunidade à vida que os afectos não se devem pensar demais. Não penses que as pessoas ficam sempre, incondicionalmente, se não tiverem uma âncora. Da mesma forma que chegam, vão e se encontrarem só um lugar frio demais não podes esperar que morram geladas. Não, não devemos magoar ninguém que somos todos fragéis, varas verdes nos vendavais dos olhares sedentos.

E a vida dá-me oportunidades?

A vida não te dá nada se não quiseres vivê-la. Mas sossega.

Gosto tanto do teu colo, dos teus mimos, que no dia em que não puder chegar até ele em meia dúzia de pedaladas na bicicleta morro de frio.

Cresce filha, cresce e sê sempre a menina que te ensinei a ser.

Até amanhã.
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11 novembro 2004

Invocação de um Anoitecer

Leio, releio, no meio emociono-me e volto a reler. É assim que te trago de volta a mim e tu vens, maravilhoso como sempre ao som de um piano. Os anos passam e tu permaneces inabalável no pedestal em que te coloquei há mais de 10 anos, com a mesma ternura, com a mesma vontade transpirada em cada sorriso, desde o dia em que cruzámos o olhar porque te apanhei a seguir descaradamente o meu cruzar de pernas. Depois convidaste-me para um copo e eu não pude dizer que não, que não há traiçao maior que a negação das vontades. Nem sabia bem quem eras, o que querias de mim, quem te tinha nos imensos dias em que não estavas comigo, se alguém esperava por ti. Depois confessaste que durante os fins de semana fora guardavas ternamente o sabor do nosso último martini. Depois confessei-me.
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