Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

06 fevereiro 2004

Esta noite papo a Teresa

Esta noite papo a Teresa. Só falta meia hora para a gala e não sei ainda que perfume usar. A Teresa, a Zé e a Ana vão lá estar. Alguma há-de passar a noite lá em casa. Pelo menos assim espero. Já não trago cá ninguém desde aquela da discoteca, nem me lembro do nome, já foi para aí há um mês. A Teresa vai ser difícil mas vou começar por ela. Ainda hoje no escritório lançou umas dicas. Vou tentar, não perco nada. E se não der, passo à Zé. Mas a Zé é um bocado maluca, quando se põe com aquelas conversas daquelas cenas góticas e dos livros esquisitos que anda a ler. .Vou tentar é ser discreto, para a Ana não ver. Se nenhuma destas quiser levo a Ana, que se lixe. A Ana é mais fácil. O pior é que depois se vai pôr com tretas de sentimentos e mais não sei o quê e já não gostas de mim e agora já gostas e eu não tenho paciência nenhuma para aquilo. E não lhe gramo aquelas meias, sempre pretas, se ainda andasse como as outras, com as meias de rede debaixo da saia preta, ela não, parece que não tem o mínimo bom gosto. Mas em contrapartida é só querer. Mas primeiro vou à Teresa, é certo. E, se não der, à Zé, que deve ser uma maluca na cama. Ou meto-me com todas e depois iam todas lá a casa. Isso é que era bom. Mas o que me interessa agora é o perfume. Que raio de frasco vou abrir? Este da embalagem esquisita é um bocado amaricado mas elas gostam. Eu é que não gosto muito. O da embalagem quadrada é mais vulgar. Mas eu gosto. Faltam vinte e nove minutos e ainda não me decidi. A minha sorte é que tenho o fato passado, por sorte já estava todo arranjadinho. Só me avisaram que conseguiram o convite há minutos, foi mesmo por sorte, e aqueles papalvos esqueceram-se de me avisar mais cedo. Porra, os sapatos estão sujos. E agora nem tempo tenho para os limpar como deve ser. Mas com este gel ninguém me vai olhar para os sapatos. As patilhas estão bem. Eu gosto. Algumas dizem que não gostam, mas deve ser só para se meterem comigo. Os dentes é que podiam estar mais brancos. Tenho de os lavar mais vezes ao dia. Tretas. Digo sempre isto e depois nunca faço nada. Como em tantas outras coisas. Como sempre. Amanhã há futebol, em casa do Rui, tenho de lhe levar o dvd. O Harrison Ford é um grande actor. Eu gosto mais dos filmes do Indiana Jones mas quando ele faz de presidente da América vai muito bem. O filme é que é um bocado chato, principalmente quando eles se põe a falar de política e mais não sei o quê e não sei que mais. Tenho de lhe levar o dvd. Ou então não. Digo que me esqueci. O filho da mãe tem aqueles meus cds todos e ainda não mos devolveu. É isso, quando ele se lembrar eu também me lembro. É justo. Pronto, já não estão tão mal, os sapatos. Espero é não os sujar pelo caminho. Pois é, o chão deve estar cheio de poças de água. Com aquilo que tem chovido não me admirava nada. Porcaria de tempo, no sábado não vai dar para ir jogar à bola no campo do Inatel. Tenho de falar disso com o Tiago, logo. Espero que aquele cromo apareça lá. Arranjaram um convite para ele e tudo. Ele não é muito destas coisas, raramente sai à noite, mas esta noite vai ser especial. A Mónica vai lá estar. A Mónica é bonita. E muito querida. E ele é um grande idiota, se calhar não merecia tanto. Mas é um tipo porreiro. Acho que ficam bem. Talvez hoje eles percebam o que até agora não quiseram ainda perceber. Se não for hoje o melhor é desistir. Tenho de calçar os sapatos, escolher o perfume, descer as escadas, que o elevador está avariado e o raio do senhorio nunca mais trata do assunto, dar uma boa noite à senhora da loja que fica mesmo à porta de casa, caminhar pela calçada até ao café, encontrar-me lá com o Sérgio, beber um whisky em dois goles só para alegrar e depois vamos os dois até à festa que ele leva o carro. Mas agora faltam dezanove minutos. E ainda não me decidi sobre o perfume.
[NC]

02 fevereiro 2004

Sobre a Falta de Consideração (Para o Fernando Soares)

Não sei o que mais me queimou por dentro. O absurdo da situação abateu-se com mais força por ser tão inesperado. Porque quando, por um momento, se pensa que a bondade pode existir no mundo, alguém nos diz que ela não nos é permitida. Exibem-nos exactos cálculos matemáticos, somas e multiplicações, onde nos mostram que ela não cabe lá, não pode haver espaço para ela. E apaga-se, que ela se vá embora. A esperança vai-se perdendo com coisas destas.
[NC]

Apagou-se. O mal estar às voltas, às voltas... e esta incapacidade estúpida de nos revoltarmos... esta cobardia reprovável! Antes, antes de se poder falar e rebelar e gritar e lutar, antes, antes de se ter tudo lutava-se por pequenos nadas... hoje, agora, todos os dias ficamos, deixamos estar e permitimos que tudo isto exista e cresça assim, a olhos vistos, impune, quase normal. Apagou-se... e ninguém se importa que fique tudo mais escuro.
[FF]

Nesta falta de luz a que chegamos, a capacidade de análise simples fica obscurecida e já nem reparamos na vergonha, que se torna nossa colega. Se num inferno longínquo um anjo perdido se recusar a rachar lenha para as labaredas será renegado? A última, a única hipótese da salvação vai-se no momento em que se abandona. E tudo fica mais triste, tudo mais negro, tudo frio, tudo em raiva por não gritar o que apetece e não se pode, tudo calado no fim.
[NC]

E o silêncio fica... entranha-se. Perdemos tudo, tudo, não há mais nada... e já não há asas que nos levem ao céu.
[FF]