Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

16 setembro 2004

O fim do mundo num sorriso prolongado

Escolheu o vestido preto para essa noite. Apesar de longo, deixava antever um pouco da pele sedosa das pernas. Seria ideal, pensou, para acompanhar o jantar mexicano. O vestido preto, que ocultava as cuequinhas pequenas da mesma cor, deixaria que as pernas, deliciosas como o chilli, abrissem o apetite. A sobremesa seria a melhor parte do jantar. |n|

O vestido preto era tão longo quanto o prazer que sabiam certo pela noite dentro. O picante tornaria o sangue mais quente, convidaria sempre a mais um pouco de vinho, tornaria os lábios mais vermelhos e os olhos brilhantes. Por baixo só umas cuequinhas muito pequenas, obviamente pretas, mas ambos sabiam a importância menor que teriam na infinita dança dos desejos segredados em doces palavras servidas mais tarde, como sobremesa. |f|

As palavras doces levemente sussuradas ao ouvido aproximam os lábios da carne quente do ouvidos, que talvez depois se deixem encantar, talvez os lábios se deixem escorregar pelo pescoço, talvez por um instante os lábios se toquem num momento de prazer proibido mas eterno. E enquanto isso, as mãos curiosas ousam percorrer a geografia do corpo, desbravar as curvas mágicas da pele ansiosa. O vestido bonito transformou-se num obstáculo ao fim do mundo num sorriso prolongado. |n|

15 setembro 2004

Um Brinco

A culpa é do cachecol azul, de lã, muito quente, que me fez companhia nos dias mais frios do Inverno passado. Foi nele que ficou o perfume que te traz sempre de volta. Lembro-me do dia em que me descobriste o corpo ansioso debaixo da imensa roupa de Dezembro. Foi o perfume impregnado no cachecol que te chamou e obrigou a oferecer-me um beijo no pescoço, encostado no final da orelha, ao mesmo tempo pousaste a mão sobre a face contrária deixando o polegar deslizar sobre os lábios ainda frios.
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Beauty is a tear



Gustav Klimt, A Virgem (1913)

13 setembro 2004

Listen to the Dawn

Acordei às 3h30. Dormias muito, tanto, completamente indiferente ao meu acordar repentino, ao arrastar do imenso lençol branco que levei enrolado a mim até à sala. As velas acessas para o jantar ainda ardem, ardem elas, elas menos eu. Acendi um cigarro roubado ao teu maço cinzento abandonado sobre o sofá onde me abandonei também, fria, completamente gelada à procura de um pouco de calor num cigarro. São 05h30. Continuas nesse teu sono inabalável perdido no calor da cama. Ao acordar acendes um cigarro. Saberás já que me perdeste? |f|

Nunca sabemos quando perdemos o outro. Nunca se sabe quando alguém deixa de ser nossa propriedade. Tu foste no frio da noite, preferiste a partida em silêncio, enquanto eu estava dormente em sonhos onde provavelmente também entravas. Foi só uma noite, desapareceste para sempre. Dizer adeus seria mais difícil, as despedidas são sempre difíceis, o silêncio é mais aparentemente mais comfortável. Voaste pelo meio do fumo do cigarro e da luz ténue das velas que ainda ardem. Nunca ninguém vai saber que numa noite perdida no tempo a lua sorriu e dois estranhos conseguiram ser felizes até ao amanhecer. |n|