Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

11 junho 2004

A quinze minutos contigo eu não diria que não

É tão bom provar-te o pescoço, é sempre tão bom
(nunca o fiz, mas imagino que assim seja)
e as prioridades do universo trocam de lugar
(as nossas certezas nunca passam de dúvidas repetidas)
mas sei que tu és o mar
(é no mar que as pessoas se afogam)
e quando estás comigo eu bebo-te tão depressa
(és salgada, entras em mim, deixo de ser eu)
o tempo foge e mata-nos
(sempre tão curto para ti enorme)
por isso, por agora
(adeus)
não façamos nada proibido
(tu dizes que não é)
e mais que um pescoço para poder descansar a língua
(o descanso é a morte e morrer contigo... tu sabes)
quero-te
(amor)

[N]

Sunrise, sunrise...

As ruas ainda estavam caladas. Liguei o carro e recostei-me no banco ainda a pensar para onde ía, as duas mãos a agarrar o volante, como quem comanda um leme. O rádio. Ainda é cedo e as notícias à hora certa não trazem boas novas, só o tempo continua quente. Baixo até meio o vidro do carro. Acho que vou por aí, até a estrada ser sinuosa demais, ou até o sol desaparecer e rebentar uma tempestade, ou até ter um furo ou ficar sem gasolina, até deixar de ter vontade e não querer mais nada. Sim. E tal como um rio, desaguo num imenso mar. Fui até à praia.

Encontrei-te já tarde. As ruas estavam cansadas de tanta agitação e eu já habituada a tanta solidão. Abraçaste-me. São esses teus braços enormes que me matam de todas as vezes que me embrulhas num abraço sem fim, como a toalha branca com bolas coloridas que me sabe tão bem pousada sobre os ombros, a cair até quase aos pés, depois de um mergulho. Os lábios a saber
a mar.

Água doce sobre a pele salgada. Água morna a cair sobre a pele ainda quente. As ruas regressam ao silêncio, e eu entregue a mim.
[FF]

Sumol de Ananás

Eram 14h27, segundo o relógio tirano. Nessa tarde sairia mais cedo. Ela já não estava ali, a cabeça voava sem destino certo, sem querer saber das ordens da razão ou do vento que a guiava. Mordeu o lábio, pensou nele, pensou no sábado, dia de dormir até tarde, pensou nele, mordeu o lábio. [N]

A tarde passava depressa. Às vezes parecia mais lenta. De qualquer forma hoje seria um dia sem ele e só o morder do lábio talvez não chegasse para disfarçar a sua ausência. Mordeu o lábio. [F]

Ele não gostava daqueles programas, era feliz em sítios longe dali. Ela era diferente. E eles uniam-se por essa aparente oposição de formas de ser. A tarde já tinha passado quase toda e ela estava mais ansiosa e feliz. Apesar disso ele ia estar longe. Trocava a noite toda por ele inteiro, queria mordê-lo, ele não estava. Mordeu o lábio. [N]

O lábio já sabe a sangue. Às vezes achava que era mais feliz sem ele e outras vezes parecia que a sua ausência a sufocava. A diferença, tão boa, para o bem e para o mal. O lábio quente. Talvez não trocasse aquela noite por ele, talvez já tivesse trocado quase tudo por ele, outras noites, dias inteiros, para no fim morder o lábio. Au! [F]

10 junho 2004

With the flash out it's more dangerous

Pedes-me a blusa fora e eu tiro, a saia, o resto, sai tudo, fico nua para ti. A máquina observa-me e eu só uma boneca para ela, para ti talvez seja mais alguma coisa, mas tu disfarças bem e nesse momento sou só um monte de curvas fotogénicas que ficarão bem numa impressão de boa qualidade, posteriomente ampliada e colada à parede de um quarto de dormir. Quem se deitar nos lençois não vai desconfiar que o corpo rijo que a partir da parede activa os sentidos foi, nesse momento da captação da alma, medo.
[N]

09 junho 2004

A Nuvem Cinzenta

Ele, de cada vez que a olhava, sugava-lhe a pele, entrava nela e na volta trazia bocados. Somos sempre assim, vamo-nos amando até que acabamos por nos roubar uns aos outros. Nunca somos propriedade própria, mesmo que consigamos um empéstimo miraculoso para comprar barato o corpo que sempre quisemos, a alma fica hipotecada pelo tempo todo em que a disponibilidade de alguém nos ameaçar. E a sombra da insegurança ameaça-nos a vida, nunca certos do amor amanhã. Ao fim, apenas os corpos ficam, enxutos.
[N]

Gaspard De La Nuit (Ondine)

Senta-te no meu colo e abraça-me muito, fecha os olhos e transforma este quarto pequeno numa praia quase vazia, quase só nossa, só uns miúdos a jogar à bola lá longe, fiquemos assim por mais um instante, por esta tarde, pela eternidade. [N]

Fecho os olhos. Só o mar a quebrar o silêncio. Só o apertar do abraço a fazer acreditar... Sim, podemos encontrar-nos um dia numa praia quase vazia. Mas até esse dia chegar, até lá, prefiro ficar no meu quarto pequeno, quase vazio. [F]

Então, juntos nesse momento, duas colheres de gelado e esquecemos que o mundo existe e nos proíbe de ser o que somos, deixamos tudo isso do lado de lá da porta, aqui dentro podemos ser. E, quando te fores embora, eu sei que me vou arrepender de não ficar aqui para sempre. [N]

07 junho 2004

I would go out tonight, but I haven't got a stitch to wear

Não devia ter acenado. Ele estava na mesa e não resisti, quando passei. Foi uma coisa impensada, momentânea e impossível de evitar, a mão levantou-se e, antes que a pudesse agarrar, acenou. Lá estavam os dois e vi-os, sorri e acenei, mas não devia. Bem que podia ter disfarçado e desviado o olhar. Interrompi-os. E agora sei quem é aquela de quem ele tanto falou. Volto para a fábrica e quando o encontrar, dentro dos muros a organizar as contas, não vou conseguir voltar a olhá-lo nos olhos. [N]

Espero que me veja, que venha beber café hoje como todos os outros dias e me veja nesta mesa com a minha amiga nova. Quero que me veja, a beber café com outra. Dois cafés na mesa, talvez daqui a pouco peça dois licores e depois ela chega e fica no balcão e pede um café primeiro e depois entrega-se ao sabor adocicado de um moscatel ou de um martini e acende um cigarro e mata-me. [F]