Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

02 julho 2004

A Noite Ausente

O Vítor haveria de gostar que fôssemos ao concerto. Mas tu, de tarde, vais mostrar o teu corpo lindo ao sol. E de noite, se ele não te levar a jantar, pões um vestido fresco, tiras um molho de bróculos e cozinhas um prato delicioso com requeijão. Partilhas esse jantar e essa noite quente. Eu vou para outro lado, talvez uns copos, o mesmo lugar de sempre, uma música de fundo, umas conversas banais. Noites distantes. {N}

Sábado ao fim da tarde. Tenho o corpo a saber a mar e as sobrancelhas cheias de sal. A pele queimada só quer é sentir a água doce do choveiro a cair morna...docinha. Deixo que o tempo passe em cada grão de areia que se arrasta no fundo da banheira. E o tempo passa.. devagarinho. Depois embrulho o cabelo numa toalha e visto a túnica leve só sobre o corpo ainda quente. Talvez nem jante. Ah o concerto... dá-me uma hora e vamos. {F}

Veneno nas paredes

As unhas cravadas na pele. É isso o que mais gosto. Esqueço-me da ilegalidade dos recibos do ordenado, não identificados e onde não se desconta IRS, esqueço-me dessa imensa trapaça empresarial. É nesses momentos curtos de transcendência que renasce o entusiasmo pela vida. É ver-te o corpo um pouco mais descoberto (obrigado, Sol) e ser coberto pela alegria de te ter comigo. É poder tocar-te levemente no braço, relembrar-me que existes, que te posso dizer coisas e tu ouves e sorris. Tudo o que é mau é afugentado à tua passagem, à tua chegada. O mundo termina nas tuas unhas cravadas em mim. {N}

01 julho 2004

Arghl.

A decência e a compostura sempre foram muito bem vistas na nossa sociedade. É por isso que não percebo. Loira e alta e vistosa e alegre e de saias curtas. Tu gostavas delas baixinhas, morenas e pensativas. Porque me roubaste essa noite? Era só uma noite, eu passei a semana toda em hello, what's your name e ao fim levaste-a tu para a sala do apartamento onde dormíamos com os sacos-cama espalhados pelo chão. Tinhas de lhe pagar aquela cerveja? Eu passei a tardes inteiras a despejar-lhe elogios, num inglês manhoso mas esforçado. E tu levaste-a de mim. {N)

A reconstrução oblíqua dos afectos

Fugir daqui. E deitar-me no teu colo onde me perco. Onde quero ser só um mimo teu. Fugir do mundo, esconder-me da mata escura dos prédios gastos e das ordens absurdas. Ser teu, ser só um sopro para ti. Fugir para longe, que é onde mora a ilusão perdida do mundo. Estou preso, não me deixam sair. Se agora de repente aparecesses e viesses aqui ter comigo eu ficava a saber que o mundo pode acabar bem. {N}

Se aparecesses o mundo era um sorriso, o sorriso bonito que trazes sempre desenhado na cara. Quero fugir dos silêncio obrigatórios, das palavras proibidas, dos passos controlados, dos olhos cegos. Dá-me também um canto do teu colo para adormecer a alma que se revolta e não sossega senão com a tua mão a pentear-me o cabelo, devagarinho e depois, depois podemos fugir. {F}

29 junho 2004

Avô

Há um ano que deixei de te ver... e tenho tantas saudades tuas. O tempo passa, passa tão depressa e foram os anos que passaram por ti que te envelheceram, que te marcaram rugas na cara e te encheram de histórias para contar. Há um ano que deixaste de esperar por mim aos domingos de manhã para te fazer a barba. Há um ano que deixaste uma sala vazia. E também havia dias em que cantavas. Depois os anos foram mais pesados que tu, e sabias que te roubariam a força, o ânimo, a vontade... Há um ano que te tenho no coraçao, na alma, em todas as doces lembranças que tenho de todos os anos que estiveste comigo. {F}

28 junho 2004

À Sombra do Mundo Somos Perfeitos

A tarde azul cobria de calor o corpo torrado. De vez em quando a areia salpicava-te a toalha, e o corpo, quase todo visível, com aquela excepção que as cores bonitas deixavam por desvendar, o corpo ficava salpicado de grãos amarelos, a areia caía para a toalha, misturava-se em ti. Não era importante, um mergulho nas ondas transparentes acabaria por limpar a areia da corpo e da alma. Depois, já seca, subirias os degraus até à esplanada e ficávamos a ver o pano da noite cair sobre o dia e sobre o mar. Quando fosse tarde e os copos dos martinis ficassem vazios eu acabaria por dizer
- Temos mesmo de ir?
ao que tu, depois de um sorriso grande como o das crianças, abanavas a cabeça afirmativamente, tem de ser, a noite chama-nos. E só quando me fosse embora é que te provaria um bocadinho de pele, dava-te um beijo na face e tu dizias até depois. No caminho de regresso esperava que a polícia não me mandasse parar, não queria ser multado, a percentagem de substâncias inebriantes no sangue deveria ser certamente superior ao limite legal, estava bêbado de ti. {N}