Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

19 junho 2004

Espaço entre a dor e o consolo

Esta tarde não apareceste e eu fiquei triste. Esperei-te no jardim do Barreiro, como tínhamos combinado durante a semana. Levei os óculos escuros para que ninguém me reconhecesse - é longe do Seixal, mas nunca se sabe... Fiz a barba - sabes que não gosto de fazer a barba - e pus o after shave. Levei a camisa aos quadrados que disseste que gostavas. Aguardei a tarde toda pela tua saia curta e justa, mas ela não apareceu. Eu queria ligar-te, a perguntar onde estavas, se demoravas, mas sei que não gostas que te telefone - o teu marido pode fazer perguntas. Mandei uma mensagem a perguntar por ti. Respondeste a dizer que estavas atrasada. Fui ao café beber um copo, passei pelo quiosque e comprei um jornal, trouxe um que trazia a notícia do Carlos Cruz e da filha. Voltei ao banco do jardim, à sombra, e fiquei a ler os resumos do futebol. O tempo demorou e tu não chegaste. Queria ligar-te outra vez, mas fiquei-me pela mensagem escrita, de novo. Respondeste que afinal já não conseguias ir, que não podias ir. Perdi a tarde. E lembrei-me que as miúdas passaram a semana toda a pedir para ir à praia, eu inventei desculpas pobres para negar a vontade delas. A minha mulher nem se importou, ela não gosta de praia, prefere ficar em casa a arranjar alguma coisa, que tem sempre coisas para fazer. Eu, que passei a semana a imaginar o momento em que te consumia os cabelos loiros numa pensão barata da Baixa da Banheira, fiquei pendurado nessa tarde, nesse jardim feio, com um jornal na mão, sozinho. Voltei para casa. Triste. Sei que não voltarás a responder às minhas mensagens. E, nesse fim de tarde de sombras amargas, apaguei o teu número.
{N}

18 junho 2004

Lover, You Shouldn't Come Over

Saborear uma língua é tão bom. Reencontro-te após tanto tempo, abres-me a porta e as línguas saúdam-se longamente. Abraçados, continuamos até à sala, deixo as malas desarrumadas pelo chão e caímos no sofá. As mãos querem ter-te toda, querem voltar a sentir-te de volta, tentam tocar-te no corpo todo de uma vez. Quando a língua viaja do pescoço à orelha não escapas a um tremer inevitável. Os beijos perseguem-te pescoço abaixo, paro no teu peito. A roupa foge-nos. Quase nus, agarrados e húmidos, ficamos assim pelo resto da eternidade. {N}

O resto do tempo que fica para trás não conta mais. Sinto as pernas quentes e depois frias e depois as tuas entrelaçadas nas minhas. Ofereço-te a alma revestida do corpo que devoras. Deixas que as minhas mãos viagem por ti, por esse imenso continente que é o teu corpo e é nele que me perco. O teu sabor na minha boca. O vestido preto de linho deixado no sofá e nós já no chão enchemos-nos de sal. Esperei por ti tanto tempo. {F}

17 junho 2004

Definição de Ternura

Acorda-me de manhã, antes de saires para o trabalho, com um beijo. Passa-me a tua mão pela cara, levemente, para te sentir a força que amo em ti, para me sentires a fragilidade dormente. Amanhã avisa antes de te ires embora, tenho medo que talvez nunca mais voltes. Mas por agora continua a dizer essas coisas bonitas, seduz-me a alma, despe-me a mente. Termina o copo de vinho tinto e sorri outra vez, esse teu sorriso condiz com o vestido curto e preto que escolhi para esta noite, as tuas mãos grandes que me tocam no braço fazem-me entornar em ti. A música fala e pede-nos companhia, tu convidas-me para dançar debaixo das luzes cor de rosa, como as cuequinhas que vesti de propósito para ti. Dancemos, é um sonho. Mas amanhã será dia de acordar, o sonho acaba. Antes de ires dá-me um beijo. {N}

Acordas-me sempre devagar, que sabes que é assim que gosto. À noite sempre que acordo com frio aninho-me ao teu lado que estás sempre tão quente e canto ao teu ouvido mimos sem fim. Deixa-me acordar mais cedo, deixa-me ceder à tentação de estar eternamente aconchegada nos teus braços e deixa-me só pousar os meus lábios sobre os teus olhos que ainda sonham antes de fugir até à sala e enchê-la de música para te embalar o acordar. Depois sei que vens ter comigo e dançamos, e não é um sonho. Antes de saires recorda-me do doce sabor dos teus beijos. {F}

Se a tua vontade é maior que a noite que nos prende

O dia nasceu. A noite passou tão depressa. Se a tua vontade fosse maior evitavas que a noite se perdesse em loucuras temporárias. Talvez inúteis, mas os aromas e a carne têm tanto valor para nós, somos assim, sangue. E tu, Maria, diz-me onde andas tu... Agora já por certo voltaste ao mundo lá de fora, por entre as banalidades afirmativas dos dias úteis. Mas, já se sabe, o prazer é o que nos torna os dias raros.
[N]

16 junho 2004

Once I Was (a Lover)

As noites eram já amenas. Ficava tempos e tempos sentada à soleira da porta a olhar para nada, a ouvir ao longe o mar embalado em ondas irregulares. Mesmo quando já era muito tarde e todas as luzes se apagavam por detrás das janelas entre-abertas ela ficava ali, o rosto apoiado entre as mãos, os cotovelos pousados sobre os joelhos.
[F]

Os rostos fitavam o nada que lhes entrava de graça pela noite e pela alma, eles deixavam-se ficar. Bebiam o tempo em goles pequenos, para não ir todo de uma vez. Era noite/era dia/era noite. Eles eram os mesmos e tentavam evitar que assim fosse, mas o tempo cravava rugas de distância em cada palavra sussurrada que interrompia o prazer silêncioso da vida na noite.
[N]

As noites perdiam-se assim, afundadas em olhares sem fim, num prolongado silêncio que só acaba com o tilintar dos copos num brinde repetido e que dispensa discursos. O ar quente que percorre a noite é como o calor que lhe sente na pele de todas as vezes que se tocam. As noites já foram mais quentes, antes, antes de se lembrarem que o tempo existe.
[F]

Tlim, tlim, tlim. O som do vidro a bater, os brindes como sugestão de outras trocas líquidas. No entanto tudo continua mudo, apenas os som dos vidros que se tocam acompanham a chuva da noite. Ele beija-a, agarra-a, abraça-a, tudo em sonho. Ela é beijada, agarrada, abraçada, sempre em sonho. Eles vão acabar a noite em casas diferentes - ele numa cama grande que já teve alguém mas que se foi; ela na cama pequena onde nunca esteve ninguém por mais de breves sonos enganados de prazer. O silêncio é mortal. Eles deixam-se ir até que um deles, ou o silêncio em vez deles, disser adeus boa noite até amanhã.
[N]

15 junho 2004

Ela vai tomar-te por tolo.

E tu vais deixar. Ela vai subornar os teus sentidos; tu, ingénuo, consentes. Ela vai comprar a tua alma, barata; e tu, imaginando um grande negócio, sorris. Não sabes que quando ela se for embora tudo volta ao mesmo lugar. Mas nessa altura já não serás o mesmo, foste roubado.
[N]

O Garrincha havia de gostar deste golo

Cajó recebe a bola da direita, pára, dribla o defesa, vai à linha e faz o cruzamento. O avançado remata, de cabeça, para fora. Dez minutos depois Cajó repete a jogada, mas desta vez o avançado marca golo. Ele festeja, corre para abraçar Cajó. Cajó lembra-se da amante que visita algumas vezes durante a semana numa terra perto da sua enquanto a mulher fica em casa a ver a novela. Cajó teve uma boa carreira, nos seus melhores anos chegou até a jogar num clube da segunda divisão, mas passou a maior parte da sua vida de jogador no clube da sua terra, o Merelinense FC. Esta época não correu de feição, mas hoje ele joga bem. Recebe outra bola, dá dois toques, passa por dois defesas, vê o guarda-redes adiantado e marca um bonito golo de chapéu. Corre em direcção à bancada e dá um beijo à mulher. É o último jogo da sua carreira e faltam cinco minutos para tudo acabar. O Merelinense está empatado e precisa de ganhar para subir à divisão de honra regional. Cajó recebe a bola das mãos do guarda-redes e caminha até ao meio campo. Com uma finta de corpo deixa três adversários especados. Levanta a cabeça e não vê companheiros desmarcados. Segue só, ele e a bola. Dá um toque pequeno e passa com um chapéu sobre o defesa. Sobram só mais dois e o guarda redes. Em frente aos dois centrais engana-os, aldraba a lógica da bola e finta. Os defesas esbarram. Cajó fica com o guarda-redes pela frente. O guardião tinha visto a jogada toda, bela, e sabia o que ia acontecer a seguir. Cajó sorriu. Puxou a perna direita atrás para ganhar força e chutou. A bola bateu no poste direito da baliza, do lado de dentro, entrou. Ainda hoje, o senhor Carlos Joaquim guarda uma fotografia desse jogo, numa gaveta do lar que fica mesmo ao lado da igreja, numa vila vizinha de Merelim.
[N]