Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

16 junho 2004

Once I Was (a Lover)

As noites eram já amenas. Ficava tempos e tempos sentada à soleira da porta a olhar para nada, a ouvir ao longe o mar embalado em ondas irregulares. Mesmo quando já era muito tarde e todas as luzes se apagavam por detrás das janelas entre-abertas ela ficava ali, o rosto apoiado entre as mãos, os cotovelos pousados sobre os joelhos.
[F]

Os rostos fitavam o nada que lhes entrava de graça pela noite e pela alma, eles deixavam-se ficar. Bebiam o tempo em goles pequenos, para não ir todo de uma vez. Era noite/era dia/era noite. Eles eram os mesmos e tentavam evitar que assim fosse, mas o tempo cravava rugas de distância em cada palavra sussurrada que interrompia o prazer silêncioso da vida na noite.
[N]

As noites perdiam-se assim, afundadas em olhares sem fim, num prolongado silêncio que só acaba com o tilintar dos copos num brinde repetido e que dispensa discursos. O ar quente que percorre a noite é como o calor que lhe sente na pele de todas as vezes que se tocam. As noites já foram mais quentes, antes, antes de se lembrarem que o tempo existe.
[F]

Tlim, tlim, tlim. O som do vidro a bater, os brindes como sugestão de outras trocas líquidas. No entanto tudo continua mudo, apenas os som dos vidros que se tocam acompanham a chuva da noite. Ele beija-a, agarra-a, abraça-a, tudo em sonho. Ela é beijada, agarrada, abraçada, sempre em sonho. Eles vão acabar a noite em casas diferentes - ele numa cama grande que já teve alguém mas que se foi; ela na cama pequena onde nunca esteve ninguém por mais de breves sonos enganados de prazer. O silêncio é mortal. Eles deixam-se ir até que um deles, ou o silêncio em vez deles, disser adeus boa noite até amanhã.
[N]