Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

27 janeiro 2004

Tudo na Mesma e Almas Trocadas

Súbito deparou-se com aquela terrífica visão à sua frente. Encontrou-o no chão, esvaído no sangue que ainda lhe jorrava, pouco mas ainda assim. Surpreendia pela brutalidade do crime pleno de requintes de malvadez - com diabo, aquilo não se faz!, disse quem viu. Taparam-no, recolheram o cadáver e os curiosos afastaram-se, desfazendo o círculo recém-formado de gente. Pouco depois a normalidade impôs-se, na envolvência das tricas quotidianas. Voltaram às aulas. Repararam entretanto que um colega novo havia chegado. Mas a memória do crime assaltava-os. Ainda os salpicos eram visíveis. E todos se recordavam dos bons momentos passados. A memória dele invadiu-os. Lembraram-se.

Costumava passear-se pelas escadas e corredores labirínticos com a segurança de quem conhecia todos os cantos daquela universidade. Todos os dias, à mesma hora, lá estava ele. Dias havia em que se atrasava, mas raros. Entrava nas salas de aula seguindo os alunos, misturando-se, com a quase naturalidade de ser só mais um. Sentado no chão, assistia à aula, exibindo um ar de verdadeiro interesse pelas matérias. Passava a aula quase toda imperceptível, imóvel. Apenas de vez em quando um bocejo lhe saía, mas que ninguém notava. No fim dos ensinamentos ouvidos saía da sala, quase sempre em último. Entre uma aula e outra, enquanto os jovens colegas aproveitavam para bebericar um café rápido, dirigia-se até à sala onde se iria realizar a próxima aula. Sentado, aguardava pela chegada dos colegas, e do professor, principalmente. Agradava-lhe quando eles chegavam e lhe faziam festas na cabeça, nas orelhas e na barriga, especialmente. O facto de se tratar de um invulgar ser naquele meio quase passava despercebido. Claro que das primeiras vezes ficavam todos perplexos. Mas em pouco tempo tinha ganho a afeição de todos, alunos, professores e até seguranças. De princípio barraram-lhe a entrada, mas repetidas insistências fizeram, com o tempo, que lhe permitissem o acesso a áreas previamente interditas. Passaram a gostar dele, houve até quem o levasse ao veterinário. Não tinha doenças, foi vacinado, deram-lhe comida. O que mais os intrigava eram as suas motivações, se as tivesse. Um animal na escola? Tinha-se isto tornado até assunto referencial, nas conversas muitas vezes alternadas entre os processos de separação de resíduos, as derrotas do Sporting no domingo anterior e bigbrotherices diversas (este só para alguns). Para alguns era giro, para outros muito giro (havia quem o quisesse levar para casa) e para outros, na verdade só um deles, nada. Para esse era só um horrososo bicho que empulgava um local de estudo que deveria ser reservado.

Todos sabiam do cão, que agora já por ninguém era ignorado, mas de um antigo colega já ninguém se lembrava - veja-se a desconsideração de que o ser humano é capaz! De facto houve um rapaz que esteve com eles apenas duas semanas, as primeiras do curso, e não mais voltou. Pouco falou nesses poucos dias universitários. Entre a estupidez das praxes e as breves apresentações dos poucos professores que não faltaram, passou despercebido aos grupos que se iam formando. E, à excepção daquele que não gostava do cão, nunca mais ninguém se lembrou do ex-colega. Dentro das portas da universidade nunca se soube dele. Afinal, foi para o cão que se transferiu a sua alma, o seu corpo tinha desapareceu num estranho ritual satânico, cozinhado à lua cheia, numa escura floresta lá para os lados de Sintra. A polícia fez buscas durante dois meses, não encontrou nada. A família desistiu, concluindo suicídio - tinha um carácter sinistro, concordaram. Duas semanas depois acolheram um cão feio que apareceu à porta de casa e por lá ficou.
[NC]