Era Uma Vez Um Copo de Leite (O Conto da Felisbela)
O céu encontrava o seu olhar, nesse momento. As poucas nuvens brancas desfiguravam-se rapidamente, transformando-se de algo que eram ainda em algo que ainda não eram mas afiguravam-se, descobriam-se ao poucos. Assim lentamente também ele observava as ondas bravas, barulhentas no rebentar. Certamente preferiria as nuvens mas não resistia à brutalidade do mar. Indeciso nestas levezas levou à boca o copo branco de leite fresco. Sentiu um arrepio na espinha - estava assim tão frio? Não, apenas a lembrança dos dias em que aquele copo era partilhado por eles os dois. Ainda em tronco nú acomodou-se na chaise longue e ligou o stereo. O sol que ainda sobrava chegou-lhe para aquecer o coração. Até se ir deitar não se lembrou mais dela.
Havia mergulhado nesse profundo silêncio há já uns tempos. Ninguém sabia quanto ao certo, mas muito, diziam. Não se lembravam nem por sombras imaginariam as razões que a levaram a tal. De contagiante colega passou àquele ser refugiado em si próprio, isolada nessa imensa escuridão de pensamentos. Essa terça feira, viu no calendário, fazia três meses que o havia deixado. Imaginou-o refastelado na chaise longue. Estaria alguém a servir-lhe o seu adorado copo branco de leite fresco tomado ao sol? Anulou este pensamento para mais não se ferir. A brisa fresca do princípio de
Setembro entrava-lhe pela janela do escritório, olhou para fora e viu que o sol já se punha. Tratou então de despachar o trabalho que restava ainda na sua secretária sempre cuidadosamente arrumada. Ansiosa, a solidão esperava-a nas paredes frias do seu apartamento recentemente alugado.
Assistiu impotente à expressiva derrota da sua equipa infligida pelo Benfica. Nem o futebol o alegraria essa noite. De repente o telefone tocou. Do outro lado da linha aquela voz conhecida pareceu-lhe mais trémula do que a recordava. Ouviu "Estou... sim... João..." e ela desligou. Então telefonou-lhe ele. Ela, disfarçando na voz o que os olhos marejantes não ocultavam, pediu-lhe desculpa. Encontraram-se no bar do Bairro Alto onde costumavam ir dantes. Ele pediu uma cerveja preta e ela só um café. Ele pediu mais outra cerveja. Deixaram-se abandonar naquelas cadeira um pouco desconfortáveis mas às quais eles já estavam afeiçoados. Ele conduziu para casa e enebriado deixou-se embalar pelo sono nessa agremiação de sonhos a que chamam noite. Ela deitou-se a seu lado.
Naquela manhã ele acordou primeiro que ela. Há muito tempo que ela não tinha um sono tão descansado. Ficou a olhá-la, não conseguia desviar o olhar da sua beleza penetrante, exactamente a mesma que tinha na memória. Deitado ao lado dela ficou a pensar nas consequências do que tinha acontecido na noite anterior. Porque raio não conseguiu ele reprimir o impulso da resposta automática quande ela lhe fez a fatal pergunta: Ainda me amas? A claridade da manhã ia entrando pelas frinchas da janela. Pensou no tempo que passou sem ela e o difícil que tinha sido aguentar o passar das horas sabendo que ela existia mas não estava ali com ele. Levantou-se mas arrependeu-se e voltou à cama. Ela dormia ainda. Fez-lhe o pequeno-almoço e levou-lho. Acordou-a com um beijo.
Surpreendeu-a o beijo dele. Já não sabia o que era acordar assim e não o esperava. O bocejo dela apagou o leve sorriso que ele possuia. Teria feito bem em ter telefonado a noite anterior? Lembrou-se da vitória do Benfica, dos copos no bar, da chegada a casa, das promessas dele. Essa manhã ela recuperou a confiança há muito perdida. O recente e breve caso com o colega da contabilidade tinha-a deixado destroçada. Tomou o leite do copo branco, o do costume, tinha um canto partido e tudo. Reconheceu-o. Deixou-se estar na cama até mais tarde essa manhã. Ele abriu a janela, ela viu o mar e sorriu. Esse retomado romance haveria de durar mais duas semanas.
Caminhava distraído quando bruscamente parou diante do expositor. Ao ver a marca pensou: se tivesse de escolher a noite mais romântica da sua vida seria aquela. Veio-lhe à memória aquela paixão jovem que lhe queimou a alma na juventude. E daquela noite lembrou-se de tudo. Recordou o reflexo dos cabelos longos na mesa do bar, a mão dela a tocar a dele, as pernas que também se tocaram, primeiro sem intenção, depois já não. Ouviu a esposa que o chamou, agarrou o six pack e dirigiu-se à caixa para pagar.
Raras vezes ia ao shopping e quando acontecia só frequentava as Amoreiras. Dessa vez, no entanto, viu-se obrigada a entrar no Colombo. Que ranhosice suburbana com aspirações!, pensou. Com um sorriso nos lábios observou de um modo quase sociológico comportamentos sociais que lhe eram desconhecidos. Os jovens de roupas largas que roubavam bebidas, a senhora idosa a ralhar com os dois netos, um homem grisalho extasiado a observar o linear de uma marca de cervejas. Distraida nem reconheceu o homem com quem tinha vivido uma fugaz mas violenta paixão. Um entre muitos, sim, mas esse até tinha sido especial. Comprou um pacote de leite magro Matinal.
[Nuno Catarino]
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