Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

27 janeiro 2004

No Escritório

Ao surpreendê-los na sala tentou arranjar uma conveniente justificação. No entanto, o seu modo nervoso e atrapalhado denunciava-a de todas as formas. Não conseguiu que a sua explicação soasse verídica... Confirmar as facturas? Isso tinha tempo mais logo, amanhã, disparou logo o chefe. Não esperava encontra-los aos dois, a secretária nova ao colo do velho patrão no escritório àquela hora. De costume não estava lá ninguém. De costume entrava lá para ir sentir o cheiro por ele deixado, passar a mão pelo seu casaco. Era hora de almoço e a Dona Filomena ficava sempre até mais tarde. Aproveitava esse intervalo em que ficava tudo vazio para alimentar a sua paixão inconfessável de vinte anos. Ele nunca lhe tinha ligado nenhuma. Ela tinha entrado há duas semanas e já lá estava no seu colo - a cabra.
[Nuno Catarino]

Lembrava-se agora com uma inconveniente frequência dos seus primeiros dias ali no escritório, quando, ainda nova, sonhava perder-se no colo do então jovem patrão. Não se lembra de ter repetido esse palpitar do coração sempre que ouvia os seus passos, antes da porta, e depois, depois da porta, a sua voz seca desejando os bons dias. Mas não tinha a ousadia descarada da nova secretaria - a cabra. É verdade que ele nunca lhe tinha dedicado muita atenção, nunca tinham conversado sobre nenhum assunto, sem contar obviamente com os normais do expediente geral do escritório. Desejou-lhe felicidades quando comunicou que se iria casar, com a mesma voz seca de sempre, a mesma indiferença, apesar de ter referido que ía sentir a sua falta durante as duas semanas de licença... havia muito trabalho. Mesmo assim sorriu. Sempre entendeu as suas palavras com outros sentidos e isso, a par com os passeios solitários em redor do casaco perfumado pousado sobre as costas da cadeira, bastava-lhe para sentir repetidas vezes, durante todos estes anos, o mesmo calor que a nova secretária procurava agora todas as manhãs no seu colo - a cabra.
[Felisbela Fonseca]

Já me sinto um boémio, como tu. Tenho de deixar de vir aqui todas as quintas. Ultimamente foi sempre não foi? Só faltamos aquela semana em que houve o jogo do Porto, dessa vez ficamos lá no bar até ás tantas a comemorar a vitória. Sabes, agora comecei a andar com a secretária nova, a Mónica. Eu já te falei dela, é bem mais nova que eu mas acho que vai dar alguma coisa. Já não me sentia assim há muito tempo. No outro dia estava com ela no escritório, coisa e tal e aparece a Filomena, a secretária velha. Pronto, tivemos de assumir. Continuaram a beber o copo de whisky, mas agora em silêncio, vidrados no palco, a conversa tinha sido abafada pela música de acompanhamento do strip de Valerie.
[Nuno Catarino]

Ando com o meu patrão. A afirmação deixou a amiga embasbacada. Bebeu o copo de um trago. Indagou: como foi isso? Olha, aconteceu... como foi contigo e o João? Tá bem, mas nós somos da mesma idade, ele é um velho! Tá bem, eu já andei com rapazes da minha idade mas nunca senti isto. è outra coisa. Sabes, gosto mesmo dele. Não é pelo dinheiro nem nada. Eu não disse nada! Tá bem, mas foi assim, olha arranjei o emprego e comecei e falar com ele. Descobri que ele é um homem muito interessante. Tem uma experiência de vida... Olha, acho que aquele ali ao canto está a olhar para ti. Não me interessa, agora tenho homem! Estou a ficar cansada, o Vibe nunca maiscomeça? Acho que é só às quatro... Amanhã ainda me quero levantar de manhã, tenho de passar pelo escritório. Mas é sábado! Eu sei, mas tenho que ir buscar o casaco que lá deixei hoje.
[Nuno Catarino]

Poderia ser para ele mais fácil explicar esse envolvimento súbito por uma mulher nova. Uma mulher nova é sempre um bom motivo. Depois pode haver outros bons motivos e então ela até é bonita e tem um corpo bem feito e, qual cereja, é inteligente e tem uma conversa interessante. Talvez até fosse esse o caso... ou não. Mas nestes dias que se passavam isso até era menos importante porque ele era feliz assim. Para ela também havia outras coisas para além do dinheiro, pequenos pormenores que inventava para não se sentir tão mal. Hoje pago eu! E não digas que não porque sabes que vou andar mais calmo nos próximos tempos.... depois pagas no meu regresso! Hoje pago eu! És parva.... já viste bem o que bebemos!? Pago eu que agora não me falta nada... pagas depois quando a festa acabar. As noites no Porto eram sempre assim, animadas, quanto mais as sextas-feiras. Os copos, a música, os olhos e depois o nascer do sol... amanhã é outro dia.
[Felisbela Fonseca]