Da Janela Mal Fechada
Quando conheci a Alice na discoteca grande, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais gira e quando a vi de dia pensei que me tivesse enganado. Quando ela punha a pintura ficava mais bonita. Mas depois apareceu o puto, o Tó, e ela deixou de se pintar, deixamos de sair de casa tantas vezes, acho que deixamos mesmo de sair de casa, arranjamos esta casa aqui às Portas de Benfica que foi uma sorte, ainda agora vamos almoçar aos domingos pelo menos uma vez por mês a casa do tio que me ajudou, é verdade que não tem grande vizinhança mas de que nos serve isso, da janela vê-se o entulho das obras, não sei onde há tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entra-nos pela janela da cozinha que temos de fechar tudo e passámos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar é gasto não sei mas sei que não é bom, não deve ser bom para o Tó, que ainda é pequeno, mas é rijo, já vais fazer dois anos para o mês que vem, gosto mesmo dele, nunca pensei que se pudesse gostar de um puto assim, da Alice é que parece que deixei de gostar, ela passa os dias por casa e não faz nada e não se interessa e não quer fazer nada, quando lhe digo olha no feira nova estão a pedir raparigas que eu vi no jornal lá no trabalho que o Berto que emprestou, ele que quer sair da oficina mas não arranja nada, compra sempre o jornal mas nunca encontra anúncios e quando encontra nunca o chamam, e a Alice não é mais a mesma, agora já não põe aquele que pôs daquela vez que a vi naquele bar da Buraca, estava ela com umas amigas e eu com uns amigos mas deixamo-los e ficamos só os dois. Acho que foi mesmo dessa vez que nos ficamos a conhecer melhor, falamos a noite toda e ficamos sentados num muro lá na Buraca a ver as estrelas, lembro-me que havia nuvens, eram poucas, e foi bonito, mas agora ela já não me olha assim, só olha pela janela como se visse no entulho um rio, um mar feito de obras, de lixo, cimentos e pedras e tijolos em montes como peixes nesse mar grande para onde ela olha, ela deve vê-lo azul como está hoje o céu e eu falo-lhe mas ela pouco responde é por isso que quando chego do trabalho como depressa o jantar que ela fez e saio, vou ao café, bebo duas cervejas, às vezes três, ou quatro, e depois se me apetecer e, ao Carlos e ao Mário também, vamos os três a uma casa que fica na Bobadela, é longe mas vale a pena, e chego a casa tarde mas quando me lembro do olhar que a Alice já não tem é que penso nesta vida que não quero que seja a minha, a nossa vida era diferente e víamos o rio da janela e os peixes, os peixes mesmo a sério, saídos da água azul do rio no instante em que dão aqueles saltos como os atletas na televisão, sorriam para Alice a responder ao sorriso dela, dá-me um beijo e até amanha.
[NC]
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