Um blog partilhado por Felisbela Fonseca e Nuno Catarino.

31 janeiro 2004

Luz da Primavera (Para o Urbano)

"Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos, que eu julgava então - e ela também - próximos do fim, porque deslizávamos ambos sobre tapetes de risco. Já nem sei bem como me apareceu, a pedir conselhos, a falar-me dos meus quadros, com poemas nas mãos que desafiavam todas as regras da vida e da arte. Tinha - e de começo assustei-me - apenas dezassete anos e toda ela brilhava de confiança em si, de insubmissão, da ânsia de tudo ler, tocar e conhecer. Sentia-se que a Faculdade onde acabava de entrar seria apenas para ela o patamar de um espaço mais vasto de descoberta."*


Aconteceu tudo tão rápido que agora na memória essa lembrança se assemelha mais a um sonho velho e vago. Toda ela acontecia de explosões de sentir. Vivia num mundo marginal, feito de combustões instantâneas de quereres e as suas relações eram também assim, apaixonadas e fugazes, intensas e fugidias. A desordem que os poemas contavam dela era mesmo real e só me apercebi da sua ordem quando ao terceiro dia saímos do quarto, cansados do amor.

Tinha na mão um copo quase cheio, uma qualquer bebida de álcool destilado, e mirava o rio, seco de sentimento nessa tarde. Ela, distraída da brancura húmida da sua pele, falava numa torrente sem dó do Inverno que não se ia embora nunca e do concerto de que lhe havia contado. Imaginava ela o trompete em desvario no confronto com a pose soberana do saxofone. Eu sentia-lhe, e só lhe queria sentir, a sua pele, de uma cor que eu nunca havia visionado em quadros, mas cuja beleza sedosa se esbatia na estridência da voz irrequieta. Deixei o copo a metade.

Quando ela se foi embora para ir viver quatro meses com o meu amigo António pensei que o mundo estivesse mais uma vez para acabar, as escadas estavam molhadas e chovia no prédio velho, ainda tentei segui-la, mas escorreguei. Penso que ela ainda me ouviu as últimas palavras: Anabela... Morro. Enganei-a e enganei-me, dessa vez não vi a luz. Quando acordei no quarto sujo de tabaco e garrafas espalhadas pelo chão, às quatro da tarde, o sol forçava a entrada na casa e eu vi que a chuva se tinha ido embora. Obrigado.


[NC]
*Primeiro parágrafo do conto "Luz da Primavera" de Urbano Tavares Rodrigues, incluído no livro "A Estação Dourada" [Europa-América, 2003].