Subúrbios e Fruta aos Pedaços
Algumas coisas que me saíram. Não consegui evitar.
Vou Saltar
Sabes querido, o meu rabo já estar a ficar gordo de estar sempre sentada. Foi a necessidade que levou a que vendêssemos a quinta do Alentejo. Eu sempre te disse que o tal negócio não dava nada, não ia dar em nada e tu sempre a insistir. Se eu te dissesse que eras um grande chato... Já não vou a tempo, bem o sei, o mal está feito. Escorre-me esta ansiedade e então sinto tudo em repetição, primeiro bem claro, depois difuso, em grande confusão, em crescendo. Lembras-te de uma obra do Steve Reich? O “Come Out”, sim. Repete-se-me tudo em memória e eu sem puder fazer para aliviar esta turbulência interior. Este jogo mnemônico que eu evitaria se pudesse, a todo o custo o faria, disseram-me hoje que só acabará quando morrer. Estou maluca e soube-o hoje. É um facto assinalável este, descobrir-me maluca. Já desconfiava mas ouvir as palavras de um técnico qualificado marca a diferença. Sabes quantos malucos correm aí pelas ruas? Eles são-no, apenas não o sabem. Fossem como nós e teriam um profissional qualificado e competente que lhes diria as verdades. E sabiam então que não passam de tolos, malucos, como eu. Olha que são muitos. Lembras-te onde guardaste o Steve Reich? Está por ordem alfabética? Na clássica ou contemporânea? Não encontro nada. Tens a certeza? Vou ver de novo. Olha, cá está, afinal deixaste-a na clássica. Vou pôr ao lado do Stockhausen. Ah não, o que interessa é o apelido, Reich, R. Cá está. Não foste às compras? O frigorífico está vazio e apetecia-me um iogurte. De morango com pedaços, tu sabes. Não te lembraste, não foi? Qual trabalho? Saíste antes das sete do trabalho, dava tempo para passar pelo supermercado. Podes mudar de canal? São só notícias, querido. Amanhã lês tudo no Público. Sabes que na televisão agora é só sensacionalismo. Ah, tá bem, se só queres ver o resumo do jogo. Olha, falei com a Clarisse. Tive de lhe telefonar a contar. Agora que olho para o telemóvel tenho aqui duas chamadas. Não interessa de quem são! O telemóvel é meu ou não? Primeiro chateias-me e depois fazes essa cara? É o António. Sim, o António. Porque é que fazes tantas perguntas? Deve ter telefonado a perguntar como foi a consulta. Tenho de lhe ligar. Agora não tenho saldo. Amanhã não te esqueças de mo carregar, ‘tá? Ele sempre foi meu amigo, não é de agora. E o que raio tem a ver ele ter deixado a mulher? Acaso fui eu culpada? Dizes então que ele deve andar interessado em mim? Com este rabo gordo?
Esqueci-me
Se ainda achas que vais a tempo deixa-me que te desengane. O tempo passa e sabemos ambos que não há volta a dar. Preferia essa conveniência ideal em que repetíamos a gosto prazenteirices memoráveis. Desencontrados do tempos e das coisas íamos para aqui ou ali conforme a vontade ditasse, ditosa possibilidade. Esquecíamos do agora para fugir para sítios conhecidos e bons, na nossa suposição dessa junção de imagens que, amareladas, ainda que de modo inconsciente colorimos. Das férias já só te lembras do bacalhau com natas e da expectativa em relação ao Mantorras. Selecções que nem por vontade as fazemos, elas mesmo na sua própria vontade, que a têm, se fazem.
“Eles provavelmente estão a beber café e a fumar charutos (...) eu sei que não posso ser livre” (Mr Johnny Cash in Folsom Prison Blues)
Esplanada
77 78 79 80 81 82 83 84 85 87 88 89. Ei, enganaste-te. Onde? Passaste o 86! Não foi nada!Miquelina, diz lá, ele não se enganou? O quê? O puto não se enganou a contar? Não sei Manel, 'tava a olhar p'ro rio. Podias olhar p'ró rio e ouvir, minha trenga. Olha, 'tava distraída... Tu quando vês a bola também não ouves mais nada! Mas olha que ele se enganou. Olha, ele deixou foi cair um bocado de gelado nos calções. Pronto, também tinhas que entornar a cerveja na mesa? Desculpa querida. Sujaste-me a Maria! Agora como hei-de ler a revista se ficou toda ensopada? Ó pai, logo vamos ver o estádio do Sporting, vamos? Cala-te e começa de novo. 86 87 88. Não, começa do início. Isto aqui é só gente esquisita. Só rapazes e raparigas mal vestidos... lá na Póvoa do Lanhoso nunca vi nada assim. Como é que se chama isto, querido? Acho que é o miradouro de Santa Catarina.
De Sobra
Desdobras-te nessa filhadaputice com a mesma agilidade que disparas o sorriso do bom dia habitual. Gostavas que fizesse o mesmo? Pergunta estúpida. Sei que não hás-de responder, ocupado que andas com trabalhos variados da mais diversa origem e proveniência. Não vale a pena que me chames, não tenho paciência para te dar, como tudo o que tenho, de resto, guardo-a para gastar com quem gosto. Assumo esse egoísmo que me sobra, gosto de o ser, poupa-me a distúrbios desnecessários, a alma agradece que se mantém clara. Eu poupo o tempo para as coisas belas e tu, se quiseres, poupa-te também e afasta-te que eu, ao contrário do Robert Johnson, de ti há muito me decidi a fugir.
Ao Leonard
Ouviste dizer que havia um acorde secreto, que David tocou e agradou ao Senhor, mas tu não queres saber de música, pois não? Tocaste essa aleluia depois de muitas aleluias outras, qual a maior. Cantaste a Joana d’Arc e as irmãs da misericórdia. Aleluias santas ou profanas. Despediste-te da Marianne e deixaste a Suzanne levar-te a um sítio que fica ao pé do rio, onde te alimentou a laranjas e chá que vieram da China. Levaste mulheres ao Chelsea Hotel nº2, a muitos outros lugares ou simplesmente abrigaste-as no teu famoso sobretudo azul. Canções de amor e ódio, nessa obra máxima que não ousaste mais igualar para que ficasse lá no cimo sem par. De princípio dizias que o amor nos chamava pelo nome, já para o fim, sabedor, disseste não haver cura para o amor. Para quem não se dispusesse acreditar ofereceste-te: sou o teu homem. Toda a gente sabe que és o maior poeta que da música alguma vez saiu da música. Mas tu não queres saber de música, pois não? Cantai outra canção, rapazes!
Apetece-me
Apetece-me mais um bocadinho. Olho pela janela e vejo o novo Estádio da Luz, já quase pronto. Esta vizinhança é um bocado esquisita. A princípio pareceu-me tudo muito lindo mas olha que agora tenho as minhas dúvidas. Encontro sempre muitas brasileiras no autocarro. Ainda hoje, no 65... Não tenho nada contra as brasileiras, mas pronto. Olha em Cascais é que há muitas. Ainda me lembro quando morávamos na Calçada Palma de Baixo. Benfica é uma boa zona. Sim, toda a gente sabe. Não é de agora, sempre foi assim. Ta bem que não moramos bem no centro de Benfica, mas não deixa de ser Benfica à mesma. E estamos a um passo do Colombo. É um instante e estamos lá. Espera um pouco. Deixa-me então dizer-te, é cinco minutos até ao Colombo e vamos para onde queremos, temos o metro, autocarros, tudo. Até táxis, mas não pode ser que é muito caro. De qualquer maneira gosto desta zona. Foi aqui que nos conhecemos, ali ao pé do Colombo. Ainda me lembro bem da farpela que trazias. Olhei pra ti por causa da saia preta que trazias. Mas agora não interessa. Não desligues já a luz que não tenho sono ainda. Este Jorge Gabriel é um maluco. Já pagaste a conta da luz? Acho que era até hoje. Devíamos era pôr tudo a pagar pelo banco, mas os desgraçados levam tudo antes de a gente receber. Olha a Mafalda Veiga, gosto desta moça. A Maria foi a um concerto dela, a Maria é que me gravou aquele cd. Sabes, a minha irmã foi lá aquele concerto no Coliseu, que depois até saiu em disco e tudo. Esse ela ainda não me gravou. Eu também não gosto assim tanto, é só para ouvir de vez em quando. Eu gosto é dos U2. Também gosto dos Xutos mas não há nada como os U2. Só não fui ao concerto em Alvalade porque o bilhete era muito caro. Sete contos? Vão roubar ao caraças! Desliga a luz, ficamos a ver a televisão às escuras. A janela está mal fechada que conseguimos ver o estádio do Benfica. É uma grande obra. Olha o Jorge Gabriel. Olha a televisão, assim às escuras é melhor, não é? Apetece-me, pronto.
Passeio
Transferiu-se dessa inabitável lua para o dia com a clarividência de quem se sabe aluar. Calcorreou esse mitigado caminho, os buracos das estrelas desviavam-lhe a atenção do céu azul-esverdeado com reflexos alternados de laranja e rosa. A sombra da lua sorriu-lhe mais vezes que o costume, o sorriso foi audível, ele ouviu-o, depois falou e ela respondeu-lhe que sim. Saltou três nuvens seguidas até resolver aterrar nesse jardim suspenso. Cansado deixou-se adormecer e quando acordou voava. Não quis acordar e continuou a voar, a dormir. Aterrou dessa vez no muro do castelo. Acordou quando a cabeça bateu na pedra da muralha. Sentiu fome, passou a mão na barriga e sentiu os diamantes que havia roubado do céu.
Loulou
Nas tardes solarengas, como aquela, ia à memória buscar lembranças de criança, especialmente as longas correrias pelos campos infinitos de trigo do Alentejo dentro de um vestido florido. Aproveitava a pausa laboral da tarde para uma breve ida à rua. O ambiente fechado e escuro do escritório (o raio do buraco escuro com pulgas, gostava ela de dizer) tolhia-lhe a alegria de que vinha inundada sempre que o sol lhe sorria. Sentava-se na esplanada toscamente elaborada em torno da roulotte e pedia um café. O cansaço ia-se à medida que a chávena esvaziava. Quando ele passou o sorriso tímido que sem querer soltou deixou-lhe as faces nesse breve instante rosadas. Disfarçou o incómodo do momento ao tentar iniciar uma conversa de beleza naïf mas completamente despropositada: vai uma azeitona?
Alface
Quem me mandou a mim casar-me com aquele homem? A frase era uma constante, nem pensada nem sentida, um hábito apenas. Mas sossegava-a dizer. Escolheu cuidadosamente a alface, já tinha o cesto cheio mas faltava qualquer coisa. Para aquela noite especial tinha de arranjar sobremesa à altura. Não é todos os dias que se comemora 30 anos de casamento. O peso dos seus cinquenta anos obrigava-a a pousar constantemente o cesto. Comprou um gelado, Vienetta ou qualquer coisa, não reparou bem. Afinal aquela comemoração não despertava a alegria que sentiu nos primeiros dez anos. Os vinte seguintes foram mais um esforço para manter as aparências. Os filhos já tinham saído de casa e eram independentes. Nesse dia pensou bastante. Irritava-a que toda a gente soubesse do caso do marido com a empregada da fábrica, a da copa C. Irritava-a que o marido, cinzento e envelhecido (bastante mais que ela), lhe trocasse as noites pela trintona descarada. Desejava apenas terminar de uma vez por todas com aquela farsa, desabitar aquela súmula de mentiras, que com o tempo mais crescia. Não esperava nesse dia conhecer o jovem António, o simpático e atencioso novo vizinho novo do prédio, que voluntariamente se deixou levar pela elegância monocromática mas intencionalmente sedutora da senhora.
Camisa Rosa
Hoje vi no elevador aquelas duas vizinhas do quarto esquerdo, sabes? As betinhas, a loira e a outra mais gordinha... Nem é assim muito e tem uma cara gira, mais gira que a loira, aquela boazona. Sabes, já as convidei para cá vir tomar um copo, para falar sobre o condomínio ou assim, não me lembro bem da desculpa que arranjei à pressa. Falei com a gordinha, ela disse que falávamos depois. Olha, se fosse a loira aceitava logo. Se ela me tivesse visto com aquele polo novo, o Tommy vermelho, passava-se. Acho que elas também partilham o apartamento porque andam na faculdade, só ainda não descobri qual. Na nossa não é, claro, vou lá sempre almoçar na cantina e nunca as vi. Olha, tu assim vestido, com essa camisa rosa da Façonnable, até tenho medo que elas nos confundam com os panascas do andar de baixo. Logo vou à Kapital, queres ir? Se não quiseres vou sozinho mas olha que já combinei com uma amiga que conheci anteontem na net e ela vai com outra amiga. Pela foto que mandou parece que tem um bocado cara de pita por isso disse que tinha 26 anos. Achas que ela percebe que já passei dos trinta? Vou agora à esplanada de S. Pedro, a Rita está lá. Sim, a Rita, tu conheces... Aquela que tem a amiga ruiva a quem tu deste o chupão quando o gelado lhe caiu no braço. Sim, essa. Logo se quiseres ir muda a camisa.
Toalha de Praia
Desculpa querida, mas tenho mesmo de te dizer isto. Já tentei antes, já pensei na melhor forma de te dizer. Espero que não fiques ofendida. Espera aí só um bocadinho, já continuo, vou só ali trocar este bikini que está molhado da praia. Mas olha linda, sabes quem vi no elevador? Aqueles dois bichas do andar de cima... Estão sempre a dizer que falam mal deles mas não fazem nada para disfarçar a sua bichice espalhafatosa. Camisas cor de rosa a deixar à vista os pelos do peito? E à noite, quando chegam a casa? Se aquele mais alto, o da barba, chega primeiro põe a Céline Dion numas alturas! Quando os vi no Pride do ano passado nem lhes disse nada, fingi que não os vi. Mas olha, o que te queria dizer mesmo era... sabes na casa de banho? Quando acabar o papel troca-o... Sou sempre eu a fazer isso. Olha, esta tua toalha de praia é gira, onde a compraste?
[NC]
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