Tom Espera
Se me dissesses que um copo é a chamada para a dança, a Matilde aceita o braço, esconde-me na trança, fujo da matéria vaga em que os sentimentos etílicos voam abaixo do tecto do bar mal alumiado, por vontade ou sem saber dela, que a luz é cara e do dinheiro gasto a arranjar o piano que afinal está mais trôpego que eu e a malta dança toda alinhada ou afinal sou eu que balanço sozinho e não sei a chave da porta que não é esta, a noite ri-se um bocadinho e tu só me dizes que me achas bonita, ela queixa-se sempre como fazem sempre as mulheres quando não lhes damos um copo, um beijo ou dinheiro e ao fim vai dar ao mesmo, que eu acabo sempre de pé a contar as luzes ainda acesas na rua cambaleante que gostava que eu lhe contasse as histórias do tempo perdido em que a amei, mas isso foi antes de o tempo levar emprestado esses trombones de peixe espada e outras raridades migratórias pela luz branca que a noite teima em ocultar mas se solta levemente num candeeiro vagabundo que se deixa brilhar para mim e eu sorrio, ele sorri, ele ajuda-me a passar e o rio pára a olhar, simpatia de marinheiro mas as ruas não são para sonhar a esta hora, é muito cedo para partir e tarde para dormir, pelo que o tempo já foi tarde quando nasceu e nem ouviu os discursos temperados do vento, fecha os olhos, filho, não vai doer, os cães ladram e o piano bebeu mais do que eu, eu sei que consegui chegar a casa para dormir deitado no corredor e ele não aguentou, esparramado no meio do bar a cantar até a lua chamar o dia que nos mata mas a garrafa vai-nos salvando, mais a ele que a mim, o piano andou a beber. Eu não. [NC]
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